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Não tem como traduzir

  (Primeira Parte) “Surrealista por temperamento, anarquista por indisciplina de berço, boêmio por amor à vagabundagem, agregado à elite pensante por acaso ”, era como se definia. Com personalidade complexa, Carlinhos Oliveira incorporou diferentes papéis ao longo da vida: escritor maldito, criança abandonada, bon vivant mulherengo, intelectual perspicaz e independente. Mas para um de seus melhores amigos, César Thedim, ele era simplesmente “ um doido em forma de canção ”. Apesar de ter sido um boêmio militante a vida toda, protagonista de porres e escândalos nos melhores botecos de Copacabana ao Leblon, seus temas iam muito além da fauna noturna. Em textos de alta voltagem literária, comentava todos os assuntos: religião, futebol, sexo, política, contracultura, drogas, boemia, moda, lazer, imprensa, carnaval, transformações urbanas, música popular, crime, neuroses, conflitos sociais, artes, televisão, ecologia. Sempre assumindo posições, expondo-se ao julgamento público, o qu...
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Redemoinho trágico e perturbador na casa

  Se a arte cria novos mundos, mas o eu precisa morrer um pouco para dar lugar a universos não seus, inventados. A criação poética presente em toda arte também implica numa representação da morte Há um outro aspecto evidente: além de significar uma vivência da morte, arte seria uma superação da morte - e sobre este tema nos deteremos um pouco mais adiante. Quanto à sua relação com a loucura, a criação poética, mais talvez do que qualquer outra experiência humana, resume as duas grandes experiências do morrer: há nela um gesto de amor apaixonado e radical, ao mesmo tempo que um mergulho na loucura. Assim, refletirei sobre a criação da escrita ficcional como ato de loucura e de transferência que instiga. A relação estabelecida entre a vida e a escrita sempre foi muito discutida no meio literário. Em alguns casos, acreditava-se ser apenas o texto o objeto de pesquisa importante para o desenvolvimento da crítica. Em outros, biografias eram analisadas, fazendo da memória a principal m...

A vida nua, crua e sem dicotomia

    Uma literatura que não usa perfume, nem traje de gala. Em José Louzeiro, as coisas aparecem com o odor que têm em nossa realidade social, envoltas por farrapos de favelados ou cidadãos de segunda classe, por disfarces, ternos com cheiro de delegacia ou, ainda, por uniformes a serviço de objetivos escusos. Neste autor, que ousa levar a reportagem às últimas consequências, a busca da objetividade e a tentativa de resgatar do esquecimento o drama humano causador e decorrente da violência deslocam para um segundo plano as preocupações de ordem formal. As frases esmeradas ou as expressões exatas cedem lugar para o “jeito de falar” do povo, para o palavrão cru, sem que isso deixe de prender o leitor da primeira à última linha de qualquer de suas obras. Livros como Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia ou Em Carne Viva , não são simples retratos corajosos de um dos períodos mais tristes de nossa história. São dedos pousados sobre uma de nossas principais feridas sociais: a vi...

Geografia poética da fome

  Foto de Gilmar de Souza – agência RBS   Uma poesia de caráter que nasceu madura. Não na idade que se pressente bem jovem até no desalinho das edições mal tratadas, na falta de sequência dos poemas, porém no tema, na maneira de apresentá-los, no calor de certas afirmações. Não há mais lugar para o poema enluarado. E se algum ainda persiste por aí, pode-se dizer de antemão que é um poeta velho, nem que cronologicamente tenha 20 anos. Impressão marcante nos deixa os poemas de Lindolf Bell. Sua poesia tem carne. Grita. Blasfema. Vive, portanto, e de uma vida que não se compraz no usufruir a hora que passa. Nem no dizer de banalidades líricas. Os jovens das gerações 60 e 70 demonstravam desde logo a força de sua poesia no uso que faziam das palavras. Lindolf Bell, por exemplo, tem um vocabulário que, por vezes, é dele só. A parte não aprende de pronto a sua mensagem. Mas sente o calor que suas palavras querem transmitir. É uma poesia de alta-voltagem. Ora, poesia se faz com...

Absurdo da condição humana

  Ilustração de Rafael Rubião Embora seus livros tenham começado a ser publicados há mais de cinquenta anos e sido elogiados por importantes escritores e críticos, a obra de Murilo Rubião ainda é pouco conhecida dos leitores brasileiros. Seus livros foram traduzidos para o inglês, alemão, tcheco e espanhol, além de diversos contos seus terem sido publicados em países como Canadá, Colômbia, Polônia, Portugal e Itália. Um dos motivos pode ser o fato de ele ter se dedicado basicamente a contos, cerca de cinquenta em toda a sua vida e trinta e três deles selecionados para seus livros. Outra questão é que seus textos costumam causar estranhamento inicial por mesclar o real e o fantástico de maneira pouco comum na literatura brasileira. Quer esses fatores tenham ou não impedido que a obra do autor se disseminasse com mais facilidade, é fundamental perceber como eles são decisivos para compreender os contos desse escritor mineiro. Costuma-se atribuir a pouca produção de Murilo Rubiã...

Malandros e otários em constante confronto

  Ilustração de Luísa Vasconcelos Os personagens de João Antônio são atores de um mundo dividido em dois grupos bacanas ou otários de um lado, e os malandros ou merdunchos , do outro. Ambos os grupos são designados por dois nomes antônimos. Essa antonímia é expressão do caráter contraditório de cada um. Os otários ou bacanas são as pessoas que fazem parte do sistema de produção: pessoas que têm uma vida estável, normal. São os fregueses das profissionais do sexo, os adversários dos profissionais da sinuca, os que possuem dinheiro e o gastam. Os malandros ou merdunchos são os jogadores de sinuca, os cáftens, os ladrões, as prostitutas. São os que obtém o dinheiro “na moleza”. São os que tiram o dinheiro dos otários. Essa qualidade de otário, portanto, vem do fato de darem o dinheiro para os malandros. A qualidade de bacana vem da sua aparência de bem alimentados e bem vestidos, de pessoas da classe média. Por sua vez, os malandros são merdunchos pela sua condição marginal, sem...

Sátiras aos costumes

  “ – Bonito papel! Quase três da madrugada e os senhores completamente bêbados, não é? Foi aí que um dos bêbados pediu:                       - Sem bronca, minha senhora. Veja logo qual de nós quatro é o seu marido que os outros querem ir para casa.” ( Fragmento da crônica “Levantadores de Copo” )   Dizer que Stanislaw Ponte Preta (alter ego de Sérgio Porto) foi um cronista popular, à primeira vista, um contra-senso: todo cronista é popular, pois a crônica um gênero que nasceu e cresceu nas redações dos jornais. Mas, dentro dessa generalidade, é possível perceber certos matizes entre nossos escritores de jornal. Stanislaw Ponte Preta na maior parte de suas produções, não parecia ter como imagem de leitor aquela pessoa que procura pressurosamente a coluna do cronista do dia, ou, melhor ainda, que chega a entrar numa livraria à procura de um livro de crônicas. Longe disso. Ele parece escrever para aquele...